E o povo de Almeida continua sem saber como pode aparecer um edifício como o mamarracho naquele sítio, quando nem sequer uma grade autorizam colocar numa janela.Quando é que alguém se propõe explicar esta situação caricata?Porque razão alguns podem fazer edifícios que são autênticos escarros e outros não podem colocar só uma grade de protecção numa simples janela.Alguém tem que explicar isto…
Quando foram colocados neste blogue os excertos das comunicações de Ray Bondin e do Presidente da CMA, sob o título “CIDADES AMURALHADAS – Problemas de gestão”, abstive-me de sublinhados e destaques porque os mesmos, por si só, eram suficientemente elucidativos. Bastava uma simples leitura atenta para compreender a sua importância e o seu alcance. Os comentários entretanto adicionados ao dito ‘post’ mostram que os almeidenses são argutos e não precisam de muitas palavras para dizer o que lhes vai na alma…
E o que lhes vai na alma, como se viu, não deixa de ir ao encontro das reflexões mais profundas e desenvolvidas por um perito de prestígio internacional em matéria de Preservação de Bens Culturais, como Ray Bondin, porque estas matérias, ainda que alguns defendam quase exclusivas de “entendidos”, assentam também numa observação e opinião de bom senso, possível a qualquer um que estima e sente como sua uma herança patrimonial que lhe cabe defender, já que também por ela sempre tem sofrido outro tipo de constrangimentos.
Quando os almeidenses vivem toda a espécie de restrições para recuperarem os seus imóveis, sem ajuda técnica, sem incentivos para a preservação de um bem que é também colectivo, e ainda com o risco de verem os seus investimentos atrofiados por uma máquina incongruente que constantemente lhes cria obstáculos, jamais podem aceitar que lhes enfiem umas palas com argumentos de “críticas paralisadoras”. Muito menos, se bem na frente dos olhos lhes põem outros “autênticos escarros”, sem sequer lhes consentir o direito de contestação, sob pena de marginalização ou represálias, remetendo-os à condição de anónimos, procurando intimidá-los com espingardadas à toa, apostando em trunfos que só denunciam legitimidade perdida ou, pior ainda, em estratégias silenciosamente urdidas com o fito de impor mais intervenções avulsas, descontextualizadas, quer da vontade colectiva dos seus habitantes quer do pulsar de todo o ambiente e envolvência histórica da sua terra.
Uma evidência dessa estratégia fez-se em Agosto passado, como se pôde verificar com uns chamados ‘workshops’, em que foram convidados diversos escultores para trabalharem o granito de forma a criarem ‘projectos escultóricos’, os quais por sua vez serviriam de base, para não lhes chamarmos de pretextos, para outras intervenções cuja dimensão e impacto deixaram os almeidenses de boca aberta: um imponente miradouro, com rampas, escadarias, pérgola, esplanada… em posição dominante e visível de todos os quadrantes, ao pé e à distância de aproximação à vila e, por outro lado, um cravo com um pedúnculo de centenas de metros de extensão com tanques e repuxos de água, encimado por um amontoado de paralelípedos de pedra para condicionar o acesso à entrada principal da fortificação, defronte às Portas de S. Francisco.
O que está em causa não é, como é óbvio, o progresso de Almeida, que ninguém, muito menos os almeidenses, os mais interessados, querem impedir, nem os próprios monumentos, um o memorial do Bicentenário da Guerra Peninsular, outro o monumento ao 25 de Abril, cuja ideia até partiu de cidadãos de Almeida que, sobretudo no último caso, há muito nela persistem. Por muito questionáveis que sejam os tais ‘projectos escultóricos’, não é tanto contra os mesmos que os almeidenses se insurgem. Esses ou outros projectos… era pouco previsível que fossem consensuais. Talvez, contudo, o risco fosse menor se tivesse havido um envolvimento afectivo das forças vivas do concelho, cativando os estudantes e as associações culturais, bem como outros cidadãos, de preferência almeidenses, num esforço afectivo e em saudável competição de ideias que poderiam depois ser desenvolvidas pelos artistas, o que não aconteceu… e já poderia ter acontecido também na chamada requalificação da porta nova, ficando apenas ao critério de um núcleo restrito de decisores, vendo-se agora que o resultado não é da simpatia dos seus habitantes, nem sequer constitui qualquer motivo de orgulho nele!
Nesse, como noutros casos, o que mais fere e indigna os almeidenses, como se tem conseguido perceber pelas opiniões manifestadas, agravadas pelo clima de secretismo, tentativa de imposição, com aprovações consumadas, é o enquadramento e impacto proposto: para um memorial ao sacrifício de Almeida, com a explosão do seu castelo há 200 anos, é previsto o acoplamento de uma enorme estrutura betonada para turista mirar, em conflito com a memória dos seus habitantes; enquanto que para outro monumento à designada ‘revolução dos cravos’, se apresenta como já oficialmente aprovado, um projecto para uma grande rotunda com espelhos de água, pedra e mais pedra, largos passeios em redor, restringindo os corredores de circulação. No primeiro, uma volumetria para se conseguir ver bem à distância, no outro um enquadramento que condicionaria e ofuscaria o que está na frente, com séculos de pré-existência!
Ao que parece, nem a sugestão de que o monumento fosse colocado mais sobre o espaço do jardim exterior foi considerada. É para pôr à frente das Portas da Fortaleza e pronto! Mesmo que afecte a envolvência da chegada, percepção e fruição do outro monumento de fundamental relevância e antiguidade histórica no local.
Mas que critérios de intervenção são estes, em que a uns tudo parece ser possível e a outros nada, nem uma simples grade, com o argumento de não compatibilidade com a envolvente do centro histórico? Alguém que explique, pede um anónimo.
Um documento da UNESCO, o Memorando de Viena, datado de 2005, citado por Ray Bondin como uma enorme esperança para o entendimento das intervenções nas cidades históricas, obriga a reflectir sobre esta problemática, pondo em evidência o risco de que enquanto precisamente a discussão internacional procura centrar-se nas intervenções modernas nas cidades históricas, enfatizando a importância de preservar a sua envolvência, como forma de ajudar a compreender as forças e as necessidades das pessoas que as construíram… no rincão modesto de Almeida, com toda a sua relevância patrimonial nacional, traçam-se rumos totalmente opostos.
Logo no Preâmbulo do referido documento avisa-se que este deve ser lido como um continuum de outros documentos fundamentais da UNESCO, já aprovados, nomeadamente de 1964 a "Carta Internacional para a Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios" (Carta Veneza), de 1968, a "Recomendação da UNESCO relativa à preservação dos bens culturais ameaçados por obras públicas ou privada", de 1976 "Recomendação da UNESCO sobre a protecção e Contemporânea Papel das Áreas Históricas ", de 1982 ICOMOS-IFLA a"Carta Internacional de Jardins Históricos"(Carta Florença), do ICOMOS 1987 "Carta para a Conservação das Cidades Históricas e Zonas Urbanas"(Carta Washington), de 1994 o Documento de Nara sobre Autenticidade, bem como a Conferência HABITAT II e da Agenda 21, ratificados pelos Estados-Membros, em Istambul (Turquia), em Junho de 1996.
Chama ainda a atenção de que o referido Memorando e o actual debate sobre a conservação sustentável dos monumentos e sítios devem ser vistos como uma chave para a afirmação de uma abordagem integrada, ligando arquitectura contemporânea, desenvolvimento urbano sustentável e integridade da paisagem assente nos padrões históricos existentes, parque imobiliário e contexto.
E mais adiante, nos Princípios e Objectivos, refere:
‘O desafio central da arquitectura contemporânea na histórica paisagem urbana é responder a dinâmicas de desenvolvimento a fim de facilitar as evoluções sócio-económica e de crescimento, por um lado, e, simultaneamente, respeitar a definição da sua paisagem urbana e o seu enquadramento paisagístico, por outro. A vivência das cidades históricas, especialmente cidades Património Mundial, exige uma política de planeamento urbanístico e de gestão que toma a conservação como um ponto-chave para a conservação. Neste processo, a autenticidade e integridade da cidade histórica, que são determinadas por vários factores, não podem ser comprometidas’.
'O futuro da nossa histórica paisagem urbana apela à compreensão entre os responsáveis políticos, urbanistas, empreendedores urbanos, arquitectos, conservadores, proprietários, investidores e cidadãos preocupados, trabalhando em conjunto para preservar o património urbano, considerando simultaneamente a modernização e o desenvolvimento da sociedade de um modo cultural e historicamente sensível, reforçando a identidade e a coesão social.'
Ora, pelo que é dado observar pelo percurso destes últimos anos, e novamente pela apresentação oficial de mais um projecto de intervenção, ainda no último dia 25 de Abril, precisamente para assinalar a efeméride, não é nada disso que se está a passar em Almeida. Há qualquer coisa aqui que está errada.
E só os almeidenses podem ajudar a corrigir.
Maria Clarinda Moreira

Digitalização de pág. da revista 'Visão' desta semana. Se o monumento é polémico agora, imagine-se com o restante.