17 dezembro, 2014

Estou cansado, pá









" Estou cansado, pá
Cansado e parado por dentro
Sem vontade de escolher um rumo
Sem vontade de fugir
Sem vontade de ficar
Parei por dentro de mim
Olho à volta e desconheço o sítio
As pessoas, a fala, os movimentos
A tristeza perfilada por horários
Este odor miserável que nos envolve
Como se nada acontecesse
E tudo corresse nos eixos.
Estou cansado destes filhos da puta que vejo passar
Idiotas convencidos
Que um dia um voto lançou pela TV
E se acham a desempenhar uma tarefa magnífica.
Com requinte de filhos da puta
Sabem justificar a corrupção
O deserto das ideias
Os projectos avulso para coisa nenhuma
A sua gentil reforma e as regalias
Esses idiotas que se sentam frente-a-frente no ecrã
À hora do jantar para vomitar
O escabeche de um bolo de palavras sem sentido
Filhos da puta porque se eternizam
Se levam a sério
E nos esmigalham o crânio com as suas banalidades:
O sôtor, vai-me desculpar
O que eu quero é mandá-los cagar
Para um campo de refugiados qualquer
Vê-los de Marlboro entre os dedos a passear o esqueleto
Entre os esqueletos
Naquela mistura de cheiros e cólicas que sufoca
Apenas e só -- sufoca.

Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou cansado de viver neste mesmo pequeno país que devoram
Escudados pelas desculpas mais miseráveis
Este charco bafiento onde eles pastam
Gordos que engordam
Ricos que amealham sem parar
Idiotas que gritam
Paneleiros que se agitam de dedo no ar
Filhos da puta a dar a dar
Enquanto dá a teta da vaca do Estado
Nada sabem de história
Nada sabem porque nada lêem além
Da primeira página da Bola
O Notícias a correr
E o Expresso, porque sim!
Nada sabem das ideias do homem
Da democracia
Atenas e Roma
Os Tribunos e as portas abertas
E a ética e o diálogo que inventaram o governo do povo pelo povo
Apenas guardam o circo e amansam as feras
Dão de comer à família até à diarreia
Aceitam a absolvição
E lavam as manípulas na água benta da convivência sã
Desde que todos se sustentem na sustentação do sistema
Contratualizem (oh neologismo) o gado miúdo
Enfatizem o discurso da culpa alheia
Pela esquizofrenia politicamente correcta:
Quando gritam, até parece que se levam a sério
Mas ao fundo, na sacristia de São Bento
O guião escrito é seguido pelas sombras vigentes.

Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou farto de abrir a porta de casa e nada estoirar como na televisão
Não era lá longe, era aqui mesmo
Barricadas, armas, pedradas, convulsão
Nada, não há nada
Os borregos, as ovelhas e os cabrões seguem no carreiro
Como se nada lhes tocasse -- e não toca
A não ser quando o cinto aperta
Mas em vez da guerra
Fazem contas para manter a fachada:
Ah carneirada, vossos mandantes conhecem-vos pela coragem e pela devoção na gritaria do futebol a três cores
Pelas vitórias morais de quem voa baixinho
E assume discursos inflamados sem tutano.

Estou cansado
Cansado da rotina
Desta mentira que é a vida
Servida respeitosamente
Com ferrete
Obediente
Obediente.

Estou cansado, pá
Sem arte, sem génio, cansado:
Aqui presente está a ementa e o somatório erróneo do desempenho de uma nação
Um abismo prometido
Camuflado por discursos panfletários:
Morte aos velhos!
Morte aos fracos!
Morte a quem exija decência na causa pública!
Morte a quem lhes chama filhos da puta!
- E essa mãe já morreu de sífilis à porta de um hospital.
Mataram os sonhos
Prenderam o luxo das ideias livres
Empanturraram a juventude de teclados para a felicidade
E as famílias de consumo & consumo
Até ao prometido AVC
Que resolve todas as prestações:
Quem casa com um banco vive divinamente feliz
E tem assistência no divórcio a uma taxa moderada pela putibor.
Estou cansado, pá
Da surdez e da surdina
Desta alegria por porra nenhuma
Medida pelo sorriso de vitória do idiota do lado
Quando te entala na fila e passa à frente
É a glória única de muita gente
Uma vida inteira...



...estou cansado PORRA!!!!!


13 dezembro, 2014

O sucesso do ajustamento






Portugueses mais ricos ganham dez vezes mais que os mais pobres .


Portugal tornou-se nos últimos anos um país mais desigual em termos de distribuição de rendimentos e isso danifica seriamente o crescimento da economia, assinala a OCDE, num conjunto de estudos hoje divulgado.
Por exemplo, o rendimento dos 10% mais ricos é hoje dez vezes superior ao dos 10% mais pobres.

Há um “aumento de longo prazo na desigualdade de rendimentos na área da OCDE [os 34 países mais ricos]” e  assiste-se a um “crescimento nas disparidades” seja antes ou depois da Grande Recessão de (2008 a 2009), refere a organização no estudo “Tendências na desigualdade de rendimentos e o seu impacto no crescimento económico”.

Apesar da notável subida dos rendimentos das pessoas e na riqueza das nações nas décadas que precederam a Grande Recessão, a verdade é que os indicadores da desigualdade eram mais favoráveis nos anos 80.



In “As minhas leituras” - 12 de December de 2014





04 outubro, 2014

Componente estranho e malicioso.





Nuno Crato foi ao Parlamento a 18 de Setembro reconhecer que os serviços do Ministério da Educação tinham errado na colocação de professores contratados nas cerca de 300 escolas com contratos de autonomia e TEIP (territórios educativos de intervenção prioritária). 
Pediu desculpa ao país, aos pais e aos docentes e deixou uma garantia: NENHUM DOS PROFESSORES COLOCADOS IRIA SER PREJUDICADO.
Esta sexta-feira, 03 de Outubro e a MEIO DA TARDE, ficou a saber-se que o Ministério deu ordem aos diretores para anularem as contratações e que 150 DOCENTES PERDERAM O LUGAR.

No dia em que pediu desculpas no Parlamento pelo erro na fórmula usada pelo Ministério para ordenar os professores candidatos à Bolsa de Contratação de Escola, o ministro da Educação prometeu que o problema se resolveria na semana seguinte.
Não só não o fez como despediu professores que já estavam contratados e até com algumas semanas de trabalho.
Ora a atitude deste Senhor, de seu nome Crato, não lhe permite socorrer-se da tal "Troika" e muito menos com a famigerada austeridade para se justificar. 
Por outro lado, não PODEMOS apelar à lealdade partidária de qualquer um de nós, sob pena de não estarmos a ser honestos com a nossa consciência, para tentarmos desculpar o tal ministro da (má) educação.

Este ultimo acto desta personagem não só significa que Crato é incompetente e  
incapaz como é irresponsável e até desumano.

Não pode ser poder.

Haja quem o afaste rapidamente ou que, e finalmente, o povo acorde e o faça de forma eficaz.


João Neves

P.S. - Não sou Professor e só tenho um filho a estudar,  mas no ensino Universitário.




03 outubro, 2014

As feiras de tudo e mais alguma coisa





“... como no Inferno quando se entra pela porta maldita e se deixa a dita esperança à entrada. Agosto é um bom mês para percebermos tudo. 
Milhares e milhares de jovens que não lêem um livro, passam o mês em festivais no meio do lixo, do pó, da cerveja e dos charros. Milhares e milhares de adultos vão meter o corpo na água e na areia, sem verdadeira alegria nem descanso. 
Outros muitos milhares de jovens e adultos nem isto podem fazer porque não tem dinheiro. 
No interior, já que não há correios, nem centros médicos, nem tribunais, proliferam as capitais, da chanfana, do caracol, do marisco, do bacalhau, dos enchidos, da açorda, as "feiras medievais" de chave na mão, as feiras de tudo e mais alguma coisa desde que não sejam muito sofisticadas. Não é uma Feira da Ciência, nem Silicon Valley.



As televisões, RTP, SIC e TVI “descentralizam-se” e fazem arraiais com umas estrelas pimba aos saltos no palco, mais umas “bailarinas”, nem sequer para um grande público. Incêndios este ano há pouco, pelo que não há imagens fortes, ficamos pelo balde de água. Crimes violentos “aterrorizam” umas aldeias de nomes entre o ridículo e o muito antigo, que os jornalistas que apresentam telejornais com tudo isto gostam de repetir mil vezes. Felizmente que já começa outra vez a haver futebol, cada vez mais cedo. 
O governo, com excepção das finanças e dos cortes contra os do costume, não governa, mas isso é o habitual.



A fina película do nosso progresso, cada vez mais fina com a crise das classes ascendentes, revela à transparência todo o nosso ancestral atraso, ignorância, brutalidade, boçalidade, mistura de manha e inveja social. 
No tempo de Salazar falava-se do embrutecimento dos três f: futebol, Fátima e fado. Se houvesse Internet acrescentar-se-ia o Facebook como o quarto f. Agora não se pode falar disso porque parece elitismo. Áreas decisivas do nosso quotidiano hoje não são sujeitas à crítica, porque se convencionou que em democracia não se critica o "povo".



Agosto é um grande revelador e um balde de água fria em cima da cabeça para aparecer na televisão ou no You Tube. 
Participar num rebanho, mesmo que por uma boa causa, podia pelo menos despertar alguma coisa. Nem isso, passará a moda  e esquecer-se-á a doença. 

Pode ser que para o ano a moda  seja meter a cabeça numa fossa séptica, a favor da cura do Ebola.



Assim não vamos a lado nenhum. Como muito bem sabem os que não querem que vamos a qualquer lado.”…




…assim escreveu José Pacheco Pereira no seu Blogue “ABRUPTO” (http://abrupto.blogspot.pt/) transcrevendo com perfeito realismo Portugal no seu melhor…

João Neves 



22 julho, 2014

Uma Nação de estúpidos



Como a Europa Vê Portugal 


O juízo que de Badajoz para cá se faz de Portugal não nos é favorável... 
Não falo aqui de Portugal, como estado político. 
Sob esse aspecto, gozamos uma razoável veneração. 
Com efeito nós não trazemos à Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem suficiente; a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos financeiros. 
Somos o que se pode dizer um «povo de bem»... 
A Europa reconhece isto; e todavia olha para nós com um desdém manifesto. 
Porquê? 
Porque nos considera uma nação de medíocres, digamos francamente a dura palavra, porque nos considera uma «nação de estúpidos».


Eça de Queirós, in 'Notas Contemporâneas' (Escrito fora de Portugal)




 


24 junho, 2014

Consciência Social de Cidadão


Quem leu o Expresso de 21 de Junho, na última página em letras garrafais estava o seguinte título: “ PS recupera 3,6 milhões das autárquicas ”.
Uma outra notícia que há dias (23/06) aparecia na comunicação social, tinha o seguinte título: “ Empresas devem mais de 800 milhões em impostos “.
Numa semana Estado despendeu 4 milhões (só) em acessórias “ outra notícia que se pode ler com data de 21/04.
Poderia aqui trazer mais títulos semelhantes que nos levem a ver como os nossos políticos, preocupados que estão com a governação deste país e procurando minimizar a situação degradante que as famílias neste momento atravessam, acabam por gerir o que é nosso.
Cortes e mais cortes tanto em trabalhadores no activo como na reforma, são feitos com uma leviandade e assiduidade tal, que nos assustam ao ponto de não sabermos onde e quando terminarão. Os “pobres” dos funcionários públicos são os mais sacrificados, parecendo ao fim e ao cabo que afinal são eles os culpados máximos desta situação em que o país se encontra. Em alguns meios de comunicação até vemos e ouvimos que o Estado gasta a sua maior tranche de receita nos vencimentos dos seus funcionários. É capaz de ser verdade, mas quando temos pessoas a ganhar mais de 5 e 10 mil euros mensais e a maioria a ganhar um pouco mais do que ordenado mínimo nacional, a discrepância está aí patente.
É preciso despertar consciências e acalentar a esperança de uma mudança. Mas como poderemos fazer isso, se aqueles que o podem fazer mudando a Lei, são os mesmos que hoje se encontram em lugares de privilégio político e social? Não obstante isso, muitos deles já procuraram conseguir um lugar ao Sol para os seus filhos e familiares. A continuidade está assegurada e a alternância de poder também. Aos demais, nada mais resta do que ir participando numa ou noutra festinha para conseguir alguns míseros sobejos, ou então alhear-se de forma a manter íntegra a sua consciência social de cidadão.
Ainda poderemos manter viva a chama de uma nova revolução. Ultimamente tem-se ouvido falar mais disso. Temo que o facto de amanhã se partir para uma situação destas, nada será semelhante ao vivido em 74. Haverá certamente muitas mais fissuras na sociedade, o que pode levar a uma alteração social de contornos imprevisíveis.
Mas se tiver que ser assim, que seja.
O importante é que a justiça social seja mais equitativa.

     

08 junho, 2014

...todo filho é pai da morte de seu Pai...




" Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.
É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.
É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.
 
Todo filho é pai da morte de seu pai.
 
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.
 
E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.
Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.
 
E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.
 
Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:e
Deixa que eu ajudo.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrado:
 
Estou aqui, estou aqui, pai!
 
O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali. "

(autor desconhecido)











13 abril, 2014

...a vergonha de não ter lutado...


 
 
 
...serviços de Finanças previstas para encerrar...
...será que escapamos?...
...entretanto vamos assobiando... 
 
 
 
 
 
 

19 fevereiro, 2014

Carta ao pai...até Abril, Fernando...



Ontem, o meu pai foi-se embora.

Não vem e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos.
A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país.
Nesses concertos teve salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira.
Ontem, quando me deitei, senti-me triste.
E, ao mesmo tempo, senti-me feliz.
Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência).
Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo.
Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida.
Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo, Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música.
Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece.

Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha.
Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela.

A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país.
A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias.
A terceira foi a esperança.

E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos.

Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar.
Não queremos mudar.
Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora.
Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios.
Eu vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito.

Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi embora.

João Tordo
19.02.2014