Eles tinham muito frio e
queriam ser refugiados.
A independência das colónias levou ao êxodo de mais de
500 mil portugueses para a "Metrópole", onde muitos nunca tinham
estado. Foi um choque emocional para osque perderam tudo e chegaram a uma
sociedade diferente. A integração não foi fácil: os retornados.
Eles tinham frio, queriam tomar banho todos os dias e usar calções
nas cidades pequenas do conservador Portugal dos anos 70 - onde não se tomava
banho todos os dias e o resguardo no vestir tinha a máxima cotação na bolsa de
valores do tempo. Alguns gritavam que não eram "retornados" mas
"refugiados" - porque ninguém retorna a um sítio onde nunca esteve,
como era o caso dos mais novos e das segundas e terceiras gerações de colonos.
Em 1974-1975, estes estranhos
migrantes não foram recebidos com excessos de simpatia: para o português comum
- que por essa altura se tinha genericamente transformado numa criatura mais ou
menos revolucionária -, aqueles homens e mulheres lembravam as chagas do
passado que era urgente afastar da memória: o colonialismo e a exploração de
outros povos por um povo, neste caso o nosso. Na maioria dos casos eram olhados
de lado - para além do uso do vestuário menos convencional. Andaram a explorar
os pretos e agora querem batatinhas? Este sentimento atravessou a sociedade
portuguesa, que se tinha tornado subitamente anticolonialista na sua relação
com os retornados - afinal eram eles, e não o português comum, os verdadeiros
colonos, os autênticos sujeitos da exploração dos povos que iriam conquistar
agora a independência. O facto de muitos continuarem a manter o discurso
"colonialista" - completamente contra o espírito do tempo - também
dificultou a integração.
A palavra "retornado"
transformou-se numa expressão utilizada com fins depreciativos. Em certo
sentido, os retornados também serviram de expiação colectiva do colonialismo
português: nós, os que nunca sairão do rectângulo, nunca fomos defensores do
colonialismo e, acima de tudo, nunca tratámos mal os colonizados. Eles sim,
eram os verdadeiros defensores do colonialismo.
De resto, nós éramos
genericamente pobres, eles eram genericamente ricos - ou pelo menos tinham
dinheiro para uma multidão de criados africanos. Em muitos casos, também não
contribuíam para uma esplêndida integração: agora que eram pobres não eram
agradecidos e continuavam, em alguns casos, a ostentar a arrogância dos
terratenentes dos espaços largos e a atirar-nos pouco delicadamente à cara a
nossa pobreza estrutural.
Só os retornados não brancos
escaparam - parcialmente - a este conflito de culpas nesses dias do fim do
império. Quando em 1984 Fernando Dacosta publica a sua grande reportagem
"Os retornados estão a mudar Portugal" no semanário "O
Jornal" estes problemas tinham-se desvanecido. Tinham passado nove anos
sobre a grande ponte aérea do Verão de 1975 e Portugal tinha conseguido sem
convulsões históricas ultrapassar o retorno traumático de mais de 500 mil
pessoas, o equivalente a mais de 5% da população residente no país nesse tempo.
Com apoios do Estado [o famoso IARN, o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais],
ajudas financeiras de outros países e o funcionamento da rede familiar, a
situação de calamidade em que num primeiro momento viveram os retornados - que
em muitos casos trouxeram mesmo só a roupa que tinham vestida e perderam todos
os seus bens - foi estancada.
O IARN é criado em Março de 1975,
quando já tinha começado o êxodo das ex-colónias, mas antes da grande ponte
aérea. Foi fundado com o objectivo de "estudar e propor superiormente as
medidas necessárias para a integração na vida nacional de todos os cidadãos
portugueses [...] que se deslocassem dos territórios ultramarinos para
território nacional, com o fim de nele se fixarem, qualquer que fosse a sua
proveniência, assegurando a disciplina do seu afluxo e a defesa dos seus
direitos".
Muitos teriam preferido ficar,
mas a ideia relevou-se impossível face aos conflitos crescentes nos territórios
em processo de independência. O "Expresso" cita um comunicado da 5.a
Divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas feito no início de Julho de
1975: "As populações estão tremendamente traumatizadas, pelo que se
afigura extremamente difícil manterem-se aqui."
O retorno foi em grande
parte uma fuga.
Ana Sá Lopes
Jornal i - 21
Fev 2015