31 outubro, 2015

Desumanização do homem



Acordo sempre bem cedo e, por força da necessidade de me ver integrada ao mundo em que vivo, ligo a tv e abro o notebook, enquanto a água ferve para o café da manhã:

“Milhares de crianças na Nigéria foram mortas, raptadas ou expostas a violência inimaginável (nota da Unicef).” Mudo de site: “Mulher tem os olhos perfurados pelo marido durante discussão do casal”. Outro site notícia: “Adolescente é apedrejado por populares após ser pego ao tentar furtar um  aparelho celular”. Abro o Facebook: “Carta aberta de Mia Couto ao Presidente da África do Sul sobre o genocídio de moçambicanos naquele país”. Na tv: “Naufrágio no mediterrâneo pode ter causado centenas de mortes de imigrantes”.


Ainda sem conseguir mensurar a quantidade de dor a que fui exposta logo no início do dia, resolvo, já com olhos embaçados e voz embargada, comprar o meu pão. A caminho da padaria, deparo-me com uma senhora que dorme na calçada abraçada a uma criança, ambas cobertas por um imundo cobertor. 

Como se não bastasse a cena em si, um senhor bem vestido e seguramente muito apressado quase nelas tropeça e reverbera: “Desgraça! Trabalhar não quer, não… Fica aí entulhando a rua”.
Perco o chão e me sinto petrificada ao observar, na gravidade de tudo o que vi nos noticiários e agora bem diante de mim, naquela cena, o paradoxo de viver, na era áurea dos direitos, a flagrante desumanização do humano.

Tratados e Acordos Internacionais estabelecem que dados direitos são preciosidades inalienáveis de cada um dos humanos. O Direito Constitucional de cada Estado traz ao seu ordenamento interno garantias a esses direitos que são diretamente ligados aos ditos “direitos naturais”, compreendendo o direito à vida, à integridade física, ao respeito à dignidade de cada ser humano.

Mas a sociedade, que bem sabe evocar as leis quando é colocado em xeque algum de seus direitos patrimoniais, vale-se de um mecanismo muito sutil para mentalmente subverter os valores que ela própria instituiu. Ela hierarquiza os seres humanos valendo-se de indicadores diversos, mas preponderantemente econômicos, de modo que quanto mais alto alguém esteja na dita “pirâmide social”, mais humano ele seja e o quanto mais baixo estiver, menos humano ele é. Ocorre, então, a desumanização do humano.

E, se não é humano, é considerado indigno de ser protegido pelos direitos inerentes à nossa espécie, momento em que tantos enxergam como legítimos atos de absoluta barbárie.

Esse método já é antigo. Europeus, em pleno “século das luzes”, equipararam indígenas americanos a animais, dizimando-os. Equipararam também a animais ou a “coisas” os africanos, escravizando-os.
Na tentativa de legitimar toda a sorte de maus tratos à mulher, religiosos, na Idade Média, travaram severas discussões: a mulher teria ou não teria uma alma?

Para algumas religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os demais, meras criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem filiação e proteção divinas, caso recusem a fé que tanto estimam são hostilizados e havidos como inferiores. Por vezes a inferioridade é tamanha que as suas existências ofendem os “santos corações religiosos”, que reagem com torturas e homicídios. Quem não leu sobre as cruzadas, as inquisições e tantas outras de mortes por motivação religiosa no curso da História e na atualidade?

É na desumanização do homem que se apoia o genocídio, tanto no passado quanto nos dias de hoje. 

Na visão fanática que deu ao nazismo contornos similares ao fanatismo religioso, os judeus nada mais eram que porcos a serem sangrados para a higienização do planeta; e assim o fizeram com esmerado sadismo, legando à humanidade a vergonha do holocausto.


É fácil perceber as incongruências históricas no tocante ao desrespeito aos Direitos Humanos e, não raro, envergonhamo-nos de nossos antepassados. Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.

Contudo, devemos estar atentos, pois raro, sim, é a sociedade conseguir enxergar as mazelas do seu próprio tempo.

Hoje, a passividade com que vemos a segregação dos negros, a discriminação dos pobres, o desprezo aos imigrantes, a demonização do infrator, a subjugação da mulher, a estigmatização de homossexuais, o desrespeito às comunidades indígenas e a perseguição de religiões e cultos diversos (no Brasil, especialmente às religiões de origem africana)  condena-nos a todos.

Aquele que se conforma com a injustiça é tão injusto quanto aquele que a pratica. 
Somos coautores da miséria moral de um tempo onde o sangue francês vale lágrimas e comoção de todo o mundo (e vale mesmo), enquanto o sangue de centenas de africanos se derrama anônimo, embora o derramamento se dê pela mesma motivação religiosa e sob o mesmo discurso de desumanização.

Ontem, ao ler os comentários acerca da xenofobia e do genocídio que vitimam moçambicanos na África do Sul, uma adolescente moçambicana comentou: “o nosso único pecado é sermos miseráveis”. Sim, ela entendeu o mecanismo: desumanizamos o pobre culpando-o por sua pobreza. 



Na visão doentia de muitos, ele é um estorvo. Um nada. “É um entulho na calçada do mundo”, diria o moço apressado que  quase tropeçou na senhora e na criança que dormiam na rua.
Sim, é nesses pobres a quem desumanizamos que tropeça a hipocrisia de uma pseudocivilização de Direitos. É neles que tropeça a religiosidade ociosa e o fanatismo sádico. Neles tropeça a nossa política não inclusiva e o nosso capitalismo: sempre cego a quem não lhe  mostrar os cifrões.



É junto a esses pobres mendigos a quem roubamos o direito de ser gente que se entulham também o humano que somos e a consciência que renegamos.


Texto de Nara Rúbia Ribeiro

Originalmente publicada no site Conti outra





24 outubro, 2015

Europeísmo ou Euroceticismo do CDS-PP




No início da década de 1990, o CDS-PP era “carinhosamente” apelidado de “partido do táxi”, pelo facto de ter apenas quatro deputados (e que, portanto, se conseguiam deslocar à Assembleia da República dividindo apenas um táxi). 
No meio da crise de resultados do CDS, foi Manuel Monteiro, de apenas 29 anos e apadrinhado pelo ex-presidente centrista Adriano Moreira, a subir à liderança do partido em 1992 e a marcar imediatamente uma mudança de estilo. 
O antigo líder da Juventude Popular entra em ruptura com as gerações anteriores do partido, corta com o CDS democrata-cristão de Freitas do Amaral, marca essa cisão ao acrescentar ao nome fundador — Centro Democrático e Social — o sufixo PP, manifesta-se frontalmente contra o federalismo e o Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht), faz com que o CDS saia da família política europeia do PPE e consegue 15 deputados nas eleições de 1995.
Ao mesmo tempo, Paulo Portas ocupava-se à crítica sem tréguas da esquerda e da direita, enquanto fundador e editor de O Independente, semanário de referência de direita anti-cavaquista. 
Portas, que apoiou desde o início a ascensão de Monteiro, era visto como um notável estratega político e escritor talentoso, e usou várias vezes a qualidade da sua escrita em textos eurocépticos e em defesa de um referendo ao Tratado de Maastricht. 
Na sua coluna Antes pelo contrário, o jornalista manifesta o seu desagrado perante a inevitabilidade da união política entre os Estados-membros da então Comunidade Económica Europeia (CEE). Por exemplo, num artigo de 28 de Maio de 1988, o futuro vice-primeiro-ministro alertava para a marginalização de Portugal no contexto de uma união política europeia, lembrando a vocação atlântica dos “descobridores” e a antiguidade das fronteiras nacionais. Portas não rejeita a CEE, que vê como oportunidade de liberalização da economia, mas sim o europeísmo que implica “abdicar da independência tal e qual a conhecemos”.

A 29 de Maio de 1992 lamentava que “não há nação europeia, nem nunca haverá”, e deixa sempre que pode o alerta da “germanização da Europa”, que descambará numa “crise social sem precedentes”. Portas acabará por abandonar O Independente no Verão de 1995 e juntar-se ao CDS, para concorrer pelo círculo de Aveiro nas eleições legislativas ganhas por António Guterres.

Paulo Portas, com uma enorme reputação adquirida dos anos de jornalista, disputa a liderança do CDS-PP em 1998, que ganha frente a Maria José Nogueira Pinto. Propõe uma lenta reconciliação dentro do partido, regressando ao modelo da democracia-cristã e enevoando a posição eurocéptica do PP. Em 2002, com a vitória de Durão Barroso nas legislativas, o PSD coliga-se com o CDS, que deixa finalmente cair, sem reservas, o “eurocepticismo”.


...vamos falar claro de uma vez para sempre ou...teremos que aturar esta figura durante muito mais tempo...