Está a acontecer.
Aquilo que nem nos passava pela cabeça que
pudesse acontecer está mesmo a acontecer. Está a acontecer cada vez com mais
regularidade as farmácias não terem os medicamentos de que precisamos.
Está a
acontecer que nos hospitais há racionamento de fármacos e uma utilização cada
vez mais limitada dos equipamentos.
Está a acontecer que muitos produtos que
comprávamos nos supermercados desapareceram e já não se encontram em nenhuma
prateleira.
Está a acontecer que a reparação de um carro, que necessita de um
farol ou de uma peça, tem agora de esperar uma ou duas semanas porque o
material tem de ser importado do exterior.
Está a acontecer que as estradas e
as ruas abrem buracos com regularidade, que ou ficam assim durante longos meses
ou são reparados de forma atamancada, voltando rapidamente a reabrir.
Está a
acontecer que a iluminação pública é mais reduzida, que mais e mais lojas dos
centros comerciais são entaipadas e desaparecem misteriosamente.
Está a
acontecer que nas livrarias há menos títulos novos e que as lojas de música se
volatilizaram completamente.
Está a acontecer que nos bares e restaurantes há
agora vagas com fartura, que os cinemas funcionam a meio gás, que os teatros
vivem no terror da falta de público.
Está tudo isto a acontecer e nós, como o
sapo colocado em água fria que vai aquecendo lentamente até ferver, não vemos o
perigo, vamos aceitando resignados este lento mas inexorável definhar da nossa
vida coletiva e do Estado social, com uma infinita tristeza e uma funda
turbação.
Está a acontecer e não poderia ser de outro modo.
Está a
acontecer porque esta política cega de austeridade está a liquidar a classe
média, conduzindo-a a uma crescente pauperização, de onde não regressará
durante décadas.
Está a acontecer porque, nos últimos quase 40 anos, foi esta
classe média que alimentou cinemas, teatros, espetáculos, restaurantes,
comércio, serviços de saúde, tudo o que verdadeiramente mudou no país e aquilo
que verdadeiramente traduz os hábitos de consumo numa sociedade moderna.
Foi na
classe média — de professores, médicos, funcionários públicos, economistas,
pequenos e médios empresários, jornalistas, artistas, músicos, dançarinos,
advogados, polícias, etc. —, que a austeridade cravou o seu mais afiado e longo
punhal.
E com a morte da classe média morre também a economia e o próprio país.
E morre porque era esta classe média que mais consumia — e
que mais estimulava — os produtos culturais nacionais, da literatura à dança,
dos jornais às revistas, da música a outro tipo de espetáculos e de
manifestações culturais. É por isso que a cultura está a morrer neste país, juntamente com a economia.
E se a economia pode ainda recuperar lentamente, já a cultura que desaparece não volta mais.
Um país sem economia é um sítio.
Um país sem cultura não existe.
Durante a II Guerra Mundial, quando o esforço militar
consumia todos os recursos das ilhas britânicas, foi sugerido ao
primeiro-ministro Winston Churchill que cortasse nas verbas da cultura. O homem
que conduziu a Inglaterra à vitória sobre a Alemanha recusou perentoriamente.
“Se cortamos na cultura, estamos a fazer esta guerra para qué?”
Mutatis
mutandis, a mesma pergunta poderíamos fazer hoje: se retiramos todas as verbas
para a cultura, estamos a fazer este ajustamento em nome de quê?
Mas esta,
claro, é uma questão que nunca se colocará às brilhantes cabeças que nos
governam.
Nicolau Santos - Expresso - 8 de Junho de 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário