Perder a democracia em nome das boas maneiras?
O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho dá uma entrevista e,
ostentando o olhar mais cândido que consegue, mente sobre uma questão
fundamental – os dados do desemprego – para tentar convencer os portugueses de
que as coisas estão no bom caminho, de que a economia está a recuperar, de que
a austeridade funcionou e de que o seu governo merece ser reeleito em Outubro.
O irrevogável vice-primeiro-ministro
Paulo Portas repete a mesma mentira em todos os púlpitos da pré-campanha que
encontra pela frente, mas com um dedo esticado de autoridade e a voz pausada
que Portas sabe que se podem fazer passar por gravitas e com os fatos de bom
corte que Portas sabe que se podem fazer passar por seriedade.
Escândalo,
porque os chefes do governo mentem? Escândalo porque não se trata apenas de uma
declaração que não corresponde à realidade, mas de uma operação de manipulação
da opinião pública, com estágios inventados para fingir que milhares de pessoas
não estão no desemprego, com milhares de desempregados transformados em
não-pessoas para os apagar das listas do desemprego, com os emigrantes varridos
para debaixo do tapete? Sim, um pequenino escândalo. Vinte vozes indignadas. Os
partidos da oposição, uns quantos investigadores não suspeitos de simpatia pelo
governo, umas organizações de esquerda, uns blogs que salvam a honra do
convento, um ou outro artigo nos media. Passos Coelho calou-se, envergonhado?
Portas desculpou-se? O PSD vem embaraçado corrigir os dados com o argumento de
que um súbito golpe de vento baralhou as notas do seu líder? Um frisson no meio
político? Não. A mentira será repetida tantas vezes quantas câmaras e quantos microfones
forem apontados a Passos Coelho e Portas. A oposição cansa-se. Afinal, já todos
sabem que os membros do governo são uns aldrabões, para quê insistir? Os
telespectadores não reparam, a mentira fica. Parece que o desemprego está a
diminuir. Talvez eu afinal tenha emprego e ainda não tenha dado por isso. Não
iam mentir na TV pois não? O governo não ia mentir, ia?
O FMI diz que, a este ritmo, só daqui a vinte anos a emprego
atingirá os níveis de 2008? Que vamos precisar de 27 anos para ficarmos de novo
na casa da partida? O saltitante Mota Soares explicará, sem pudor, que não se
pode dar demasiada importância ao FMI porque está farto de se enganar. O mesmo
FMI cuja receita de austeridade o governo seguiu com a obediência de um poodle
amestrado, jurando que as suas mezinhas eram bafejadas pelo Espírito Santo?
Sim. Mas ninguém perguntou isso ao ministro ou, se perguntou, não apareceu nas
televisões, que é o mesmo que não perguntar.
A mentira tornou-se não uma parte integrante do discurso
político (sempre o foi), mas o cerne do discurso do poder. Todo o discurso do
poder é uma mentira porque se articula em torno de mentiras nunca denunciadas
pelo que são. Nunca ninguém dirá em público a Passos Coelho ou a Portas, como
alguém disse a Joseph McCarthy, "Será que você não tem um mínimo de
decência?" E nunca ninguém o dirá
porque a força capturou a política. O medo capturou a dignidade.
Achamos que é falta de educação dizer a alguém que mentiu
mesmo quando essa pessoa mente descaradamente e há milhões que sofrem por isso.
E os jornalistas vivem no pavor de ser considerados "parciais", de
"ter uma agenda". Não tem importância mostrar Passos Coelho três
vezes num telejornal a debitar propaganda, mais dois ministros e dois
secretários de Estado, como numa típica ditadura sul-americana (para usar o
cliché). Isso não é parcialidade. Preocupar-se com a veracidade dos factos é
"ter uma agenda". "Ter a agenda" do governo não é ter uma
agenda, é citar fontes institucionais. Denunciar falsidades no discurso do
poder passou a ser considerado militância de esquerda. Pode fazer-se às vezes,
uma vez. Mas não se pode fazer de cada vez que uma mentira sai da boca de
Passos Coelho. Seria impensável, inaceitável, uma perseguição. Por isso, a
propaganda ganha sempre. Por isso a democracia perde sempre.
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, foi
responsável pelo maior esquema de fuga ao fisco na história da Europa, roubando
milhares de milhões de euros aos contribuintes europeus? O presidente do
EuroGrupo, Jeroen Dijsselbloem, inclui no seu CV um mestrado inexistente que
apagou quando foi descoberto? O FMI sofre de esquizofrenia financeira, impondo
à força aos países medidas que condena nos seus documentos internos? Que
importa. Pode falar-se nisso uma vez nos jornais, mas insistir seria falta de
educação, "ter uma agenda". Dizemo-nos indignados mas não queremos
ser considerados indelicados.
Rimbaud perdia a vida por delicadeza. Estaremos dispostos a
perder a democracia em nome das boas maneiras?
JOSÉ VÍTOR
MALHEIROS - 04/08/2015